sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Pequeno Tratado das Grandes Virtudes

André Comte-Sponville

A leitura deste livro me trouxe um grande bem-estar. Por isto resolvi  compartilhá-lo com você, querido leitor. O tema é bastante oportuno nesta época em que o relacionamento entre as pessoas é cada vez mais intenso, com o advento da internet, e a religião perde seu antigo valor de balizamento moral em virtude de um desencantamento do mundo. Porque devemos agir moralmente? Respondo, de maneira até certo ponto egoísta: para sermos felizes. Estou cada vez mais convencido de que a felicidade não mora nas coisas, mas sim habita nosso mundo interior.

Virtude é sinônimo de poder. A virtude do veneno é matar, a da faca é cortar, do remédio, curar. E do homem? Agir bem. Sabemos disso. Agindo bem temos o máximo de poder possível. É pela virtude que chegamos às alegrias humanas. O autor do livro, André Comte-Sponville, reconhece que teve muito trabalho para escolher sobre quais virtudes discorreria e, após eliminar algumas e fundir umas com as outras, chegou a um total de dezoito.

São elas: a polidez, a fidelidade, a prudência, a temperança, a coragem, a justiça, a generosidade, a compaixão, a misericórdia, a gratidão, a humildade, a simplicidade, a tolerância, a pureza, a doçura, a boa-fé, o humor e o amor. Elas não devem ser cultivadas isoladamente, mas em conjunto. Existem virtudes mais fracas que outras, algumas servem de passagem para as demais, e o amor, que substituiria a todas tem o problema de ser a única virtude a não depender da nossa vontade. Analisemos cada uma delas.

A polidez
Esta é e não é uma virtude. Quantas vezes não temos vontade de socar a cara de um canalha polido, preferindo mesmo que ele fosse mais grosseiro e mal-educado? Então, porque dizemos que ela é uma virtude? Porque a moral começa pela educação. A polidez é uma aparência de virtude. A educação para o ético começa pelo estético. Os pais sabem disso. Por isso ensinam boas maneiras aos filhos pequenos, dizendo que é feio fazer tal e tal coisa. É pela polidez, portanto, que entramos para o reino das virtudes.

A fidelidade
O segundo passo na entrada da verdadeira humanidade é aprender a se empenhar em manter a palavra dada, o compromisso em meio ao rio do tempo que leva embora todas as lembranças. Pois é pela memória que se fixa o espírito no homem. Sem ela viveríamos na improvisação e não seria possível uma cultura. Mas não deve ser cega e obstinada, pois a fidelidade deve ser à verdade da qual o espírito se tornou amante, e não à sua mera aparência, que pode, inclusive, contrariá-la com o passar do tempo.

A prudência
A prudência é a virtude instrumental que serve a todas as outras, pois não tem um objeto próprio, mas apenas escolhe os meios para alcançá-los. Ela existe porque o futuro é incerto e as condições da vida devem ser avaliadas para se agir. Nenhuma virtude pode prescindir da prudência que, no entanto, não pode subsistir isoladamente.

A temperança
A temperança é a moderação dos desejos sensuais para deles desfrutar de modo mais puro e completo. Quem não usa de temperança se torna escravo de seus desejos. O corpo não é insaciável: a insaciabilidade é uma doença da imaginação que nos condena sempre a achar que nunca se está satisfeito levando-nos a infelicidade, pois ao desejo do intemperado nunca haverá vinho bastante, nem sexo bastante. É difícil de ser cultivada, porque devemos controlar fortemente nossa vontade. E esta quer sempre ir adiante.

A coragem
É a mais universalmente louvada das virtudes, o que não quer dizer muita coisa, pois neste caso é louvada também pelos estúpidos e pelos malvados.  Mas a coragem que deve ser considerada como virtude é aquela desinteressada, altruísta ou generosa. Como ela supõe um esforço, toda virtude é coragem. Por isso o epíteto “covarde” é a mais grave das injúrias, referindo-se ao menos virtuoso dos homens. Chamamos de coragem intelectual à firme disposição de não ceder ao medo e se submeter unicamente à verdade.

A justiça
É a única virtude absolutamente boa. Todas as virtudes anteriormente mencionadas – coragem, temperança, prudência, por exemplo – podem ser utilizadas para o mal, e neste caso não seriam virtudes. A justiça é o horizonte de todas as virtudes e a lei de sua existência. Ela se situa no duplo respeito à legalidade e à igualdade entre os indivíduos. Mas se se opõem estas duas, é preferível combater a legalidade, que pode ser injusta. A justiça só existe e só é um valor, inclusive, quando há justos para defendê-la. Ela não dispensa , portanto, as demais virtudes, como a prudência, a coragem, a tolerância, etc. É, como diz Aristóteles, a mais completa das virtudes.

A generosidade
Esta virtude só brilha por ser demasiadamente rara neste mundo onde impera o egoísmo. Ela é a primeira virtude que imita o amor, do qual se distingue por ser fruto da vontade, diferentemente deste.   Nós amamos a idéia do amor, mas somos incapazes de amar, por isto procuramos ser generosos. Amar o amor é regozijar-se com a idéia de que o amor existe, ou existirá. Também é esforçar-se por fazê-lo advir. Isto é a própria generosidade: esforçar-se por amar e agir em conseqüência disso.

A compaixão
A compaixão é a simpatia na dor ou na tristeza do outro. Não significa aprovar e compartilhar as razões de quem sofre, mas simplesmente se recusar a ver outro sofrer.  Podemos sentir compaixão até pelos animais, o que é a única prova clara da superioridade humana em relação ao restante da natureza. Ela é uma virtude que nos leva ao amor, embora ainda não o seja. Deve ser cultivada exatamente por isso.

A misericórdia
Esta é a virtude do perdão. Não significa esquecer o mal que nos foi feito, o que a prudência impede, mas cessar de odiar. Ela compreende que se o outro é mau, está enganado ou dominado por paixões. Devemos nos recusar a compartilhar do ódio que o outro sente, evitar somar egoísmo ao seu egoísmo e cólera à sua violência. Por fim, devemos aprender a perdoar a nós mesmos, que muitas vezes nos odiamos e precisamos cessar de nos odiar.

A gratidão
Ser grato é retribuir um prazer com alegria, compartilhar. A gratidão ensina que há uma humildade alegre ou uma alegria humilde, que sabe que sua causa está em outro, do qual é devedora. Pode ser um amigo, um desconhecido, Deus, o mundo, o importante é agradecer, pois agradecer é bom, regozijar-se com o regozijo alheio. A gratidão realiza um trabalho de luto, porque tudo passa, mas fica a sensação de que o que foi vivido foi bom e sua memória deve ser honrada.

A humildade
A humildade é tão humilde que até duvida que seja uma virtude. Ela combate o narcisismo, o tamanho excessivo do eu e suas ilusões. Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo. Mas a humildade, a mais religiosa das virtudes, é contraditória. Pode levar ao ateísmo, exatamente porque não consegue conceber como um eu tão cheio de falhas possa ter sido criado por um ente divino.

A simplicidade
Ser simples não é fácil. A complicação é fartamente usada para esconder a pobreza de uma asserção. Esta virtude também combate o narcisismo, pois requer o esquecimento de si, deste ego vaidoso, que interfere e torna qualquer coisa nebulosa e complicada. Toda época tem seus sofistas e sua escolástica. Mas existe algo mais simples que E=mC2? Nenhuma outra virtude persiste se não é simples.

A tolerância
Ser tolerante não é tolerar tudo. Uma tolerância universal seria moralmente condenável e contraditória. Voltaire diz que devemos tolerar-nos mutuamente, porque somos todos fracos, inconseqüentes, sujeitos à mutabilidade, ao erro. Contudo, a intolerância só deve ser admitida enquanto ela não puder ter em mãos os instrumentos capazes de destruir o regime de tolerância que a permite.

A pureza
Existe coisa mais evidente do que a pureza? E coisa mais difícil de descrever em palavras? Todas as religiões a reconhecem e a impõem em seus sacramentos. Impuro é tudo o que se faz de má vontade. A pessoa pura é aquela que pode contemplar tanto o puro quanto o impuro sem se envergonhar, pois para ela tudo é puro. O impuro não; a maldade no coração fá-lo ver maldade em tudo o que o rodeia. Ser puro é amar desinteressadamente.

A doçura
Eis uma virtude feminina. É a força da graça, da beleza, do sorriso. Mansa e tranqüila, ela é passiva, cheia de submissão e aceitação. Qual sabedoria não deve ser assim? Se a vida fosse apenas dominada pela virilidade masculina seria triste e estúpida. Obviamente, quando se diz que ela é uma virtude feminina não se quer dizer que seja exclusiva das mulheres. Existem muitos homens doces e mulheres viris.

A boa-fé
Esta palavra rege nossas relações com a verdade. Confunde-se com sinceridade. É a conformidade dos atos e palavras com nossa vida interior. Não é dizer sempre a verdade, pois podemos nos enganar, mas dizer a verdade em que cremos. Também podemos nos encontrar em situação em que a prudência impede que a pronunciemos. Mas ainda que se cale sobre ela, os atos devem confirmar a verdade em que se crê, como, por exemplo, mentir para salvar a vida de um inocente.

O humor
Buscar um sentido para a vida é querer algo ilusório. Diante disso, duas atitudes são possíveis: sentar e chorar ou apelar para o humor, que nada mais é do que uma desilusão alegre. Nele rimos de nossa pobre condição no mundo. Mas cabe distinguir o humor da ironia. Esta é seriedade, zomba e vê ridículo nos outros, naquilo que odeia, enquanto o humor é aquele que ri de si mesmo, daquilo que mais ama.   O humor é um meio-termo equívoco entre a seriedade e a frivolidade. Vê o que há de frívolo na seriedade e de sério na frivolidade.

O amor
Ninguém manda no amor. Pelo contrário, é este sentimento que comanda tudo. E ainda que não exista, o amor comanda pela própria ausência. Ele é tão essencial para a humanidade que esta criou a moral, que nada mais é que seu simulacro. Qual é, em essência, o mandamento da moral? Aja como se amasse. Porém é necessário, antes de abordar o amor como virtude esclarecer os diversos sentidos desta palavra, tão equívoca nos dias de hoje.

O amor Eros
O amor erótico é o amor como falta, como desejo. Em si, ele é contraditório, pois sua realização significa sua extinção. Toda relação baseada neste amor, portanto, está fadada ao fracasso ou à morte, como o demonstram as tragédias românticas. Não há amor feliz, e essa falta de felicidade é o próprio amor. “Como eu seria feliz se ela me amasse”, diz-se ele, “se fosse minha!” Mas, se fosse feliz, não a amaria mais, ou não seria mais o mesmo amor. Eros é um Deus violento, ciumento e egoísta. Mas depois que se sacia, ele se acalma e, por fim, se entedia.

O amor Philia
Mas nem todo amor é falta ou desejo. Existe o amor que é pura alegria, como aquele que temos pelos amigos e pelos filhos. Ele nos deixa feliz exatamente porque é uma gratidão pela existência daquele que nos dá prazer. Os casais só podem perdurar na felicidade após o amor erótico se passarem para este outro tipo de amor. Entre as pessoas que se amam se vive em plena liberdade e não é necessária a existência da moral. Não é necessária a coragem da mãe para defender o filho, não é necessária a tolerância com o amigo bêbado, nem qualquer outra virtude. O amor substitui a todas, naturalmente.

O amor Ágape
Contudo, o amor philia é restrito àquelas pessoas que nos agradam, que nos rodeiam, e por isso alcança um número muito restrito de pessoas. E as pessoas que nos são indiferentes? E as pessoas que detestamos? Não é possível amá-las como mandou Jesus? O amor ágape é um amor criador. Ele pega um objeto desprezível e lhe cria um valor. Este amor é possível mesmo para os que, como nós, são ateus. O autor justifica: “Como não amar, ao menos um pouco, quem se parece conosco, quem vive como nós, quem vai morrer como nós? Todos irmãos diante da vida, mesmo que opostos, mesmo que inimigos, todos irmãos diante da morte: a caridade seria como que uma fraternidade de mortais, e decerto isso não é pouco”.

Considerações finais sobre o livro
O texto é belíssimo, coisa comum entre os conterrâneos de Proust. Não há nenhuma necessidade de se conhecer filosofia para lê-lo. O autor destrincha com maestria os assuntos e as citações aparecem apenas para coroar uma brilhante exposição. Particularmente aprecio a posição do autor, que é ateu e materialista e por isto se recusa a fundamentar qualquer coisa no além. Ele considera que a hipótese de Deus não simplifica a compreensão da existência do universo.

De cara, vê-se uma certa antipatia do autor pelos poetas, especialmente por Rimbaud, cujas razões quem conhece o autor de Uma Temporada no Inferno sabe bastante compreensíveis. E tem razão nisto: os poetas se lixam para a moral e quem segue conselho de poeta acaba muito mal. Outros que recebem uns cascudos de vez em quando são Nietzsche e Kant. O primeiro pela estupidez em que frequentemente cai ao condenar sem mais a compaixão e o segundo pela apego ferrenho à chamada Lei Moral, que condena, de forma absoluta, quem mente.

A maioria dos encômios do autor é dirigida para o grande filósofo Spinoza, um dos homens que mais amaram a humanidade. A ponto de ser banido do meio desta. Também há citação farta de outros autores cuja história de vida é um testemunho de coragem e amor, como Alain e Simone Weil. Esta última, aliás, que era religiosa, faz uma comparação da ausência de Deus no mundo como o afastamento, por amor, de um pai que quer que o filho se desenvolva por si só, que é arrepiante. Este Pequeno Tratado das Grandes Virtudes dá de dez a zero em qualquer livro do Rubem Alves.


Jimii

Publicado no Recanto das Letras em 14/05/2009
Código do texto: T1593160

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