sábado, 15 de novembro de 2008

O bem e o mal e as virtudes e vícios segundo Platão

As pessoas podem debater assuntos como a moral e a ética de pelo menos dois modos: com sua experiência própria, obtida no cotidiano, e também a partir do ponto de vista filosófico. O saber prático que acumulamos no dia-a-dia permite que todas as pessoas tenham condições de falar e construir um pensamento a respeito da ética. Esse pensamento formado no cotidiano é fundamental para o equilíbrio de toda e qualquer sociedade.
Quando queremos entender mais profundamente a questão da ética podemos recorrer aos filósofos. A Ética é um ramo de estudo da Filosofia. Para compreender as idéias éticas e morais do presente vamos entrar no pensamento de alguns filósofos. Vamos tentar entender seu código-fonte. Para isso, precisamos de atenção e ir além da superficialidade.
Vamos falar um pouco da série Star Wars, dirigida por George Lucas. O filme fala da luta permanente entre o bem e o mal. O bem é representado pelos cavaleiros Jedi, e a maior expressão do mal é Lord Vader ou Darth Vader. O mal está presente em todo o universo? O que é o mal para quem escreveu a ficção Star Wars? O mal é um dos lados da força. A força é a energia vital do universo e ela se manifesta de duas formas, a boa e a má. Por isso, em Star Wars, o jovem Anakin Skywalker virou o terrível e temível Darth Vader. Esta posição tem um fundamento filosófico chamado de maniqueísmo. O maniqueísmo é uma doutrina simplista que divide o mundo em dois lados, o bem e o mal. No filme em questão, o bem e o mal travam uma luta incessante.
Uma questão importante: em Star Wars, as coisas são um pouco mais complexas, pois o lado escuro da força disputa as pessoas o tempo todo. Algumas são ganhas pelo Dark Side. Outras não. Depois veremos qual seria a explicação disso, mas agora o importante é discutirmos o que é o bem e o mal.
Atenção para duas perguntas: no filme Star Wars, o mal é real? O que é o mal? A resposta parece fácil, mas não é. Ali, o mal existe e está em todos os lados. Os cavaleiros Sith são os guardiões avançados do mal. Aqueles que usam espadas de luz vermelha são os Sith. Já os Jedi são os cavaleiros que buscam manter o universo com o equilíbrio no lado bom da força. Mas o mal existe e é difícil de definir. Ele é o oposto do bem. Nesse filme, ele é efetivamente real e seu impacto é destruidor, desorganizador e implacável. Em geral, o mal é impiedoso como Darth Vader e sua Estrela da Morte.
Aqui vamos aprofundar nossa reflexão. Vamos abrir as fontes e buscar a origem da idéia de mal como real. Ela não está na religião católica. Sabe por quê? O catolicismo foi muito influenciado pelas idéias do filósofo grego Platão, nascido 428 a.C.
Para Platão, o mal não é real. O mal acontece no universo como a ausência do bem. Não dá para estudar ética sem discutir o que é o bem, e, portanto, o que vem a ser o mal. Não se esqueça de que estamos discutindo isto do ponto de vista filosófico para podermos ir mais longe. Vamos entender um pouco as idéias de Platão, depois voltamos a Star Wars.
O filósofo inglês Mark Rowlands escreveu uma passagem genial e muito fácil de entender:
"Platão - um nerd de matemática confesso - acreditava que a matemática espelhava a estrutura verdadeira da realidade, ou algo assim, e por isso vamos usar um exemplo que agradaria a ele. Suponha que temos alguns círculos desenhados em papel. Alguns deles serão versões melhores de círculos que os outros. Alguns serão mais ovais que circulares, por exemplo. Mas podemos distinguir claramente quais círculos oferecem os melhores exemplos de círculos e quais oferecem os piores. Como podemos ser capazes disso?""
"De uma maneira ou de outra, devemos ter algum tipo base de comparação. Se podemos distinguir os bons exemplos de círculo dos maus, e todos os graus intermediários de bom e mau, então devemos ter alguma idéia de como um círculo perfeito deve ser. Se não tivéssemos tal idéia, então como poderíamos separar os bons exemplos dos maus, os superiores dos inferiores? Então vamos admitir que devemos ter alguma idéia que nos permite distinguir as boas versões de círculo das más. De onde tiramos esta idéia? A resposta de Platão é que não tiramos isto de lugar algum no mundo físico."
"De acordo com Platão, nós a tiramos de um lugar fora do mundo físico. Há que existir, ele conclui, um reino não-físico do ser, e neste reino residem coisas como círculos perfeitos. Não apenas círculos perfeitos, tudo perfeito. Neste reino não-físico existe um homem perfeito, uma mulher perfeita, um cavalo perfeito, um triângulo perfeito, uma nuvem perfeita, uma espada (ou sabre de luz) perfeita e assim por diante. A estes exemplos perfeitos de coisas Platão se referia como FORMAS, e a este reino não-físico que os contém, ele chamava MUNDO DAS FORMAS."
Antes de continuarmos, repare que Platão é considerado um FILÓSOFO IDEALISTA exatamente porque ele defendia que as coisas nascem das idéias. Ao contrário dos MATERIALISTAS que dizem ser as idéias fruto do mundo e não o mundo fruto das idéias. E o que isto tem a ver com a questão do bem e do mal? Para responder isto, vamos avançar um pouco mais na explicação do Prof. Mark Rowlands:
"Estas formas eram, de acordo com Platão, arrumadas hierarquicamente, e no topo desta hierarquia estava aquilo que Platão chamava em si de FORMA DO BEM, o que podemos chamar de BONDADE EM SI. O conceito por trás disso é bem similar ao caso dos círculos. Várias pessoas, ações, regras e instituições são, pelo menos aos nossos olhos, boas. Algumas dessas coisas são más. E no meio existem várias graduações de bom e mau. Mas mesmo as coisas que consideramos boas não são perfeitamente boas. Não importa o quão boa uma pessoa seja, por exemplo, ela sempre poderia ser melhor. (...) Assim sendo, além do mundo físico ordinário (normal), PLATÃO DEFENDEU A EXISTÊNCIA DE UM MUNDO NÃO-FÍSICO DAS FORMAS. Entretanto, de acordo com Platão, não só este mundo físico das formas existe, mas ele é, de fato, mais real que o mundo físico ordinário."
Ética pode ser ensinada? Ou o mal presente na sociedade pode fazer as pessoas tornarem-se eternas "Darth Vader"? Independentemente dos pontos de vista, para formarmos um melhor juízo disso, precisamos conhecer mais e melhor o pensamento de quem se dedicou ao terreno da ética. Vamos voltar à questão das virtudes e dos vícios.

Para Aristóteles, as virtudes e os vícios podem ser definidos pelo critério do excesso, da falta e da moderação. O vício sempre seria uma conduta ou um sentimento excessivo ou deficiente. Já a virtude seria um sentimento ou conduta moderados.

Para entendermos bem esta questão, vamos usar dois exemplos: para Aristóteles, CORAGEM é uma virtude. Já a TEMERIDADE (podemos chamar de IMPRUDÊNCIA diante de qualquer perigo) é um vício por excesso e a COVARDIA seria um vício por deficiência. Para Aristóteles, a VAIDADE é um vício por excesso, e a MODÉSTIA, um vício por deficiência. Aristóteles vê no RESPEITO PRÓPRIO a virtude, diante da vaidade ou modéstia.

Sobre a boa sorte de alguém, Aristóteles via que os homens podiam ter sentimentos. Quando estes sentimentos eram de moderação, tínhamos a JUSTA APRECIAÇÃO da sorte do nosso conhecido. Mas também nosso sentimento podia descambar para o vício por excesso e tornar-se INVEJA.

Um hacker precisa ter vontade de conhecer e de compartilhar seu conhecimento. Um hacker que é superficial naquilo que se propõe a fazer ou entender está submetido ao vício da preguiça. O pior tipo de preguiça é a preguiça mental. Quando temos um grande problema pela frente, a preguiça sempre aparece como a droga para um viciado. ROMPER COM A PREGUIÇA DE APRENDER é um dos pilares fundamentais da ÉTICA HACKER.

Vamos continuar buscando resgatar um outro aspecto muito importante de nosso debate sobre o bem e o mal, sobre vícios e virtudes. Para isso, vamos recorrer a um importante filósofo chamado Baruch Spinoza (1632-1677), nascido em Amsterdã, na Holanda. Spinoza era de uma família tradicional judia de origem portuguesa. Sua família emigrou porque os judeus estavam sendo perseguidos em Portugal. Spinoza tinha uma outra visão sobre vícios e virtudes. Ela estava ligada também ao controle das paixões e dos sentimentos. Para entendermos um pouco sobre isto, vamos ler um trecho do livro 'Convite à Filosofia', da professora Marilena Chaui:

"Para Spinoza, somos seres naturalmente passionais, porque sofremos a ação de causas exteriores a nós. Em outras palavras, ser passional é ser passivo, deixando-nos dominar e conduzir por forças exteriores ao nosso corpo e à nossa alma. Ora, por natureza, vivemos rodeados por outros seres, mais fortes do que nós, que agem sobre nós. Por isso, as paixões não são boas, nem más, são naturais. Três são as paixões originais: alegria, tristeza e desejo. As demais derivam-se destas."

"Assim, da alegria nascem o amor, a devoção, a esperança, a segurança, o contentamento, a misericórdia, a glória. Da tristeza surgem o ódio, a inveja, o orgulho, o arrependimento, a modéstia, o medo, o desespero, o pudor. Do desejo provêm a gratidão, a cólera, a crueldade, a ambição, o temor, a ousadia, a luxúria, a avareza."

"Uma paixão triste é aquela que diminui a capacidade de ser e agir de nosso corpo e de nossa alma; ao contrário, uma paixão alegre aumenta a capacidade de existir e agir de nosso corpo e de nossa alma. No caso do desejo, podemos ter paixões tristes (como a crueldade, a ambição, a avareza) ou alegres (como a gratidão e a ousadia)."
Veja agora como Spinoza amarra as suas idéias:

"Que é o VÍCIO? Submeter-se às paixões, deixando-se governar pelas causas externas. Que é a VIRTUDE? Ser a causa interna de nossos sentimentos, atos e pensamentos. Ou seja, passar da passividade (submissão a causas externas) à atividade (ser causa interna). A virtude é, pois, passar da paixão à ação, tornar-se causa ativa interna de nossa existência, atos e pensamentos. As paixões e desejos tristes nos enfraquecem e nos tornam cada vez mais passivos. As paixões e desejos alegres nos fortalecem e nos preparam para PASSAR DA PASSIVIDADE À ATIVIDADE. Como sucumbimos ao vício? Deixando-nos dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza. O vício não é um mal, é fraqueza para existir, agir e pensar. Como passamos da paixão à ação ou à virtude? Transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria em atividades de que somos a causa. A virtude não é um bem, é a força para ser e agir autonomamente."

O texto foi longo, mas é extremamente claro. Vamos retomar nosso caminho. Os filósofos explicam de vários modos a questão da ética e do que vem a ser o bem e o mal. O importante é sabermos que não existe sociedade nem agrupamento humano que possa existir sem uma moral e uma ética. O professor Vanderlei de Barros Rosas afirmou que alguns filósofos e pensadores diferenciam ética e moral de vários modos:

"Ética é princípio, moral são aspectos de condutas específicas,Ética é permanente, moral é temporal,Ética é universal, moral é cultural,Ética é regra, moral é conduta da regra,Ética é teoria, moral é prática."

Para encerrar, vamos ler o trecho de um texto do professor Renato Janine Ribeiro, chamado "Ser Ético, Ser Herói", disponível integralmente no site oficial dele.
"Ser ético é mostrar-se capaz de heroísmo. Vale a pena então irmos, deste filme recente (Casa da Rússia), baseado num livro de John Le Carré, para a tragédia grega Antígona, que Sófocles escreveu no século V antes de Cristo. Penso que toda reflexão sobre a ética deve começar por ela.

Antígona é filha de Édipo. Dois de seus irmãos lutam pelo poder, e ambos morrem. O trono fica então com seu tio, Creonte, que manda enterrar um dos sobrinhos com todas as honras - e deixar o corpo do outro aos abutres. Antígona não aceita isso. Participa do enterro solene de um irmão e depois sepulta, com os ritos religiosos, o outro, o proscrito.

O rei fica furioso. Está convencido de que é uma conspiração contra ele. Manda descobrir quem violou suas ordens. Ao saber que é a sobrinha, tenta poupá-la: se ela negar que foi ela, ou se pedir desculpas, enfim, ele lhe dá todas as saídas - sob uma condição só, de que ela negue o seu ato. Antígona se recusa e é executada.

Essa história é exemplar. Ela mostra que há um conflito latente entre a ética e a lei. Um governante dá ordens. Estas podem ser legítimas ou não. Creonte fez o que não devia, moralmente, mas é ele quem manda. A lei está com ele. Neste caso, o que fazer?

Vou passar a um caso relativamente recente. Um tempo atrás, eu estava na França, quando um homem morreu na calçada, em frente de uma farmácia, sem que ninguém o acudisse. O farmacêutico explicou: se tocasse no outro, se tornaria responsável por ele. Só um médico poderia fazê-lo. Descobriu-se, porém, que bastaria um remédio simples para salvar o rapaz da morte. O que fazer?
Assisti então a um amplo debate. Foi sugerida uma mudança na lei, para que as pessoas pudessem acudir a seus próximos sem serem processadas, quando agissem de boa fé. Também se propôs um sistema de atendimento mais rápido das emergências. Mas quem, a meu ver, resolveu a questão foi um jornalista, que disse mais ou menos o seguinte: - Se precisarmos de uma lei que autorize as pessoas a agirem humanamente, a socorrerem os outros sem pensar nos castigos e riscos que correm, não estará tudo perdido? Porque nunca as leis vão prever todos os casos. Sempre, para alguém agir bem, de maneira ética, em solidariedade com os outros, haverá um terreno incerto, um espaço que pode até ser ilegal. - Precisamos de uma lei nos permitindo ser decentes? continuou ele. Ou deveremos estar preparados para correr os riscos, até mesmo de sermos presos, quando um valor mais alto se erguer, o valor do respeito do outro?
É este o heroísmo de que falava o personagem da Casa da Rússia. É este o heroísmo que Antígona praticou. E ele exige que, às vezes, estejamos dispostos a infringir a própria lei, a desobedecer às regras, quando for em nome de um valor superior. Em nosso mundo, este valor mais elevado pode ser, antes de mais nada, a vida de alguém. Aliás, costuma haver polêmica sobre o chamado "furto por necessidade", quando um esfomeado furta comida para sobreviver: isso não é um crime.
Mas as coisas podem ir mais longe. Maria Rita Kehl elogiou aqui, na semana passada, o líder dos sem-terra João Pedro Stédile. O que vale mais, a lei de propriedade da terra, que perpetua uma exclusão social enorme, ou o direito das pessoas a viver, e acrescento, a viver dignamente? Do ponto de vista ético, é claro que vale mais o direito à vida digna.

Nem sempre foi assim. Um pregador puritano inglês do século 17, Richard Baxter, tem uma frase horrorosa. Na época, enforcava-se quem roubasse um pedaço de pão. Ele justifica isso: a vida dos pobres, explica, não vale grande coisa, ao passo que o atentado à propriedade destruiria os fundamentos da própria sociedade.

Não há consenso a este respeito. Uns defendem os sem-terra, outros os atacam. Mas o que quero levantar aqui é algo mais forte: é que a ética e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige romper com a lei. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça impera.

Aí, sim, o ser humano precisa ser heróico. Porque violar a lei, mesmo que seja por um valor moral relevante, significa sofrer as penas da lei. Numa sociedade decente, imagino que o juiz não mandará para a cadeia quem infringiu as normas legais devido a valores morais mais altos, como os que citei. Mas não há garantia nenhuma disso. Pode ser que a pessoa seja punida, mesmo.

E é importante insistir nisso. O que queremos nós: cidadãos obedientes à lei, a qualquer lei, ou sujeitos éticos, decentes? O ideal é juntar as duas coisas. Mas, na educação, devemos apostar na autonomia, isto é, na formação de pessoas que sejam capazes de decidir por si próprias. O que significa que, em casos raros e extremos, elas tenham a coragem de enfrentar o consenso social e suportar as conseqüências de seus atos.

Isso, para terminar, pode fazer de qualquer um de nós um pequeno herói. O heroísmo não está só nas personagens da mitologia grega ou nos super-heróis da TV. Ele pode estar presente quando cada um de nós enfrenta uma pequena prepotência, em nome de um valor mais alto - desde, claro, que arque com os resultados de sua ação e que além disso lembre que é falível e pode estar errado. Mas é desses pequenos heroísmos pessoais que depende a dignidade humana."

Sérgio Amadeu
Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É professor da pós -graduação da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero.
Autor de várias publicações, entre elas: Exclusão Digital: a miséria na era da informação. Militante do Software Livre.
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